As jabuticabeiras (Vivaldo Coaracy)
À hora do café matinal, a moça entrou, vindo do jardim, fingindo uma indignação que não era lá muito sincera e acusou em tom de promotor público:
- Os seus passarinhos...
Já sei. Quando os bichos - cachorros, passarinhos ou seja lá o que for - fazem alguma coisa errada, são meus. Quando está em paz, são nossos. Ou não vêm precedidos de possessivos. Fiquei logo sabendo que alguma coisa estava torta e perguntei como se impunha:
- Que fizeram os passarinhos?
- Depenaram as jabuticabeiras! Não ficou uma fruta para remédio. E a minha geleia?!...
- Paciência! Ficaremos este ano sem geleia de jabuticabas. Venha tomar o café antes que as torradas esfriem.
Sorri. Para dentro, bem entendido. Sorri porque então compreendi aquela alegria exuberante dos sanhaços esta madrugada. Entre o alguidar que lhes serve de banheira e a ramalhada das árvores, dançaram um bailado vertiginoso, no trançado de curvas cinza-azuladas que traçaram no voo, cruzando os primeiros raios do sol, num delírio jovial e tumultuoso. Compreendi. Era a festa das jabuticabas.
Está bem. Posso privar-me da gulodice apreciada, a troco da alegria dos passarinhos. Como que para recompensar a minha conformação, a corruíra do costume entrou pela sala adentro, acenou um bom dia alegre e, familiar e descuidada, pôs-se a caçar mosquitos e outros bichinhos ao longo da vidraça. É a visita de todas as manhãs e já está confiada que nem mais se assusta com os arreganhos da Zita que finge querer pegá-la. O Rex, já experiente e desiludido, limita-se a acompanhar com o olhar sonolento, o saltitar da avezinha ao longo do peitoril. Contemplado a vivacidade da corruíra, a moça, com uma torrada a caminho dos dentes, esqueceu os sanhaços e as jabuticabas. Ainda bem. Mas eu continuei a pensar numas e noutros.
No fundo do jardim desta casa, existem duas jabuticabeiras vetustas, talvez centenárias. São tão velhas, que já estão de miolo mole. Fazem-me pensar no Rocha Alazão.
Rocha Alazão foi um boêmio que viveu neste Rio de Janeiro nos tempos de minha juventude. Não sejam indiscretos; não perguntem quando foi isso. Era mentiroso como ele só. A propósito fosse lá o que fosse, tinha sempre um caso mais extraordinário a contar. Uma vez em que, na sua presença, se falava em árvores venerandas pela antiguidade, o Alazão acudiu com a história de certa mangueira velhíssima que existira na fazenda de sua avó. Era tão velha, tão velha que já estava caduca.
- Caduca como, ó Rocha?!
- Ora! caduca, senil, de miolo mole. Já não sabia mais o que fazia. Dava manga misturada com goiaba., com caju, com sapoti, abacate, pitanga... Tudo ao mesmo tempo.
Bem; se eu disser que as jabuticabeiras aqui de casa já estão como a mangueira da avó de Rocha Alazão, os meus leitores não vão acreditar. Também não é tanto assim. Só dão jabuticabas. Mas que não regulam mais, não regulam mesmo. Perderam a noção do tempo. Deixaram de obedecer ao figurino imposto pela natureza para que cada coisa tenha a sua época própria. Às vezes frutificam em maio, às vezes em dezembro. Já as vi cobertas de flores, tronco e galharia, em pleno inverno. E como é linda uma jabuticabeira toda vestida, de cima abaixo, com a escumilha branca de suas flores docemente perfumadas! Não me venham dizer que flor de jabuticaba não tem perfume. Tem, sim senhores. Um perfume discreto e suave que acorda saudades nem a gente sabe de quê. Só não o sente quem não tem olfato e não tem alma.
No ano passado, as jabuticabeiras deste jardim floresceram e frutificaram durante o ano inteiro, uma carga após outra. Diante daquela exuberância pródiga, cheguei a supor que estivessem a se despedir da vida. Lá no fundo do seu instinto vegetal (por que não haverá um instinto vegetal? Que sabemos nós?) teria despertado a percepção de que o destino estava cumprido, de que a sua existência de árvores generosas chegava ao termo. E num derradeiro esforço na ânsia de se dar, despediam-se da vida naquele desatavio de flores e de frutos e de folhas novas a sorrir no verde luminoso. Despediam-se da vida e dos seus amigos, os sanhaços, os tiés, as mariquitas, as aves alvissareiras que as envolviam numa grinalda viva de voos trançados em desenhos caprichosos.
Despiram-se depois das folhas. Em torno delas, junto ao pé do tronco, formou-se um tapete circular de folhas amareladas que vinham caindo, silenciosamente, como os flocos de uma neve dourada, a pousar de manso, uma após outra, sobre a aridez da terra dura. Era a seca. Ficaram nuas, com os galhos finos a desenhar uma filigrana parda de encontro ao azul do céu. Pareciam dois esqueletos irmãos a acenar o supremo adeus. Pensei cá de mim mesmo: "Morreram as jabuticabas!" E a alma chegou a vestir luto pelas árvores amigas.
Engano. Ilusão. Aparência. Vieram as chuvas e as jabuticabeiras reverdeceram. Duas vezes vestiram-se de flores. As primeiras um vento frio veio do sul, fora de tempo, crestou e matou. Persistentes, tenazes, na decisão de cumprir a tarefa que o destino lhes dera, as árvores brotaram nova florada, mais densa, como um vestido de noiva, que as envolveu, espraiando-se pelos ramos e pelo tronco abaixo até junto às raízes.
E as flores se converteram em pequeninos botões verdes, esferas minúsculas agarradas ao lenho, que foram crescendo dia a dia, transformar-se em fruta. O sol das manhãs, ao voltar do seu passeio do inverno, foi lhes dando cor. Uma pincelada aqui, e uns riscos arroxeados foram surgindo sobre a epiderme verde das bolinhas já polpudas e gorduchas. Os frutos foram crescendo e tornando-se roxos, cada vez mais, quase pretos, antes de desprender-se da árvore.
A moça já via, por antecipação, na prateleiras da geladeira, fiadas de vidros cheios de uma geleia saborosa, cor de ametista translúcida. Mas os sanhaços acordaram cedo. E fizeram a festa das jabuticabas.
Paciência! Não teremos geleias de jabuticaba para adoçar o amargo pão de cada dia. Sirva-nos de compensação a alegria desta passarada que povoa o velho jardim, que enche de cantos a manhã primaveril, que tece os ninhos na galharia das mangueiras frondosas. E valha-nos o exemplo consolador destas jabuticabeiras que, vetustas, quase ao fim da vida, ainda encontram na própria seiva a energia de dar, dar de si, dar para os outros. (Do livro "Portugês - Terceira série Ginasial" - Gilio Giacomozzi)
ALGUMAS PALAVRAS DO TEXTO
Sanhaço: espécie de ave também chamada sanhaçu ou assanhaço.
Alguidar: vaso.
Corruíra: Espécie de ave também chamada, no nordeste, de rouxinol.
Vetusto: velho; decrépito.
Escumilha: tecido fino de seda ou lã.
HUMOR - Meu pai é tão grande
Dois garotinhos contando vantagem:
- Meu pai é muito grande! Tão grande que nem consegue passar embaixo da porta!
- O meu é maior! - rebateu o outro - Ele é tão grande, mas tão grande que pra fazer cesta no basquete, ele tem que se abaixar!
- Ah! Mas o meu é maior! Ele é tão grande, mas tão grande, mas tão grande que não pode comer iogurte!
- Não pode comer iogurte? - perguntou o amigo. - Como assim?
- É que um dia ele comeu e, quando chegou no estômago, já tinha passado o prazo de validade! (Seleção de Luzia Campos Lapa - Santos/ São Paulo - Da Folhinha do Sagrado coração de Jesus)
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